Conceição Evaristo é uma das autoras que mais gosto na vida. Conceição inventou um termo na nossa Língua Portuguesa, que é a “escrevivência”. Os estudiosos, tanto da obra de Conceição quanto das interfaces dessa obra com as Ciências Sociais, com a Psicologia, com a Antropologia e com a própria Literatura, vão ficar bravos pelo fato de eu dizer que é um “termo”. Gente…. eu sei que é mais do que isso. Alôôôô… me deixem “rasgar entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim, versejar o âmago das coisas”. Simmmmmmm, escrevivência é muito mais que um termo. Escrevivência é vida, militância, arte…. tudo isso expresso na escrita. Mas aqui, para atingir espaços outros, chamo de termo.
Conheci a escrita de Conceição há uns dois anos atrás, mas me encantei de um jeito, que fui atrás de tudo que tinha dela. Hoje sei bastante dela, acompanho no Instagram e me apaixono a cada vez que ouço ela falar. Conceição tem um currículo invejável, a que não vou me ater aqui porque não é esse o propósito desse texto. Hoje quero falar da obra de Conceição Evaristo, a partir das minhas leituras.
Conceição recebeu o prêmio Jabuti em 2015 com o livro “Olhos d’Agua”, publicado em 2014. Talvez esse seja o motivo de esse ser o livro mais conhecido dela e, inclusive ter pessoas que cometam o sacrilégio de achar que ela só tem esse livro ou que esse é o primeiro. Deixa eu apresentar rapidinho as obras dela. Conceição tem participação em diversas antologias e obras coletivas. Mas livros individuais publicados, por enquanto são 6 e eu tive a alegria de ler todos, recentemente.
- Ponciá Vicêncio (Romance) – 2003
- Becos da Memória (Romance) – 2006
- Insubmissas Lagrimas de Mulheres (Contos) – 2011
- Olhos d’agua (Contos) – 2014
- Histórias de leves enganos e parecenças (Contos) – 2016
- Poemas da recordação e outros movimentos (Poesia) 2017
É sobre cada um deles que quero falar. Cada um tem a sua especificidade, a sua cara. Eu dou risada quando alguém fala que ama Conceição por ter lido apenas “Olhos d’agua”. Tudo bem, eu respeito. Mas quem lê “Olhos d’agua” e se encanta, se ler Ponciá e Becos da Memória quer ser Conceição. É de uma beleza, de uma força, de uma dor que lacera, que desperta, que encanta.
Ponciá Vicêncio, o primeiro romance publicado de Conceição Evaristo é o meu predileto. Ponciá é uma mulher negra, neta de ex-escravizados. O avô de Ponciá, tinha um braço mutilado, que estava sempre para trás. Era tido como perturbado. Ponciá herda do avô a aparência, e uma herança. O avô é uma referência tão forte e mística na vida de Ponciá, que ela carrega dele inclusive a forma de andar, com o braço para trás, mesmo o dela não sendo mutilado. Ponciá cresce, deixa a família e vai vivendo a vida, casa-se, tem 7 abortos espontâneos. A perturbação começa a tomar conta dela. Junta-se o desalento dos filhos perdidos, a violência sofrida com o marido. Mas tudo isso vai sendo deixado para trás, enquanto ela vai se fechando dentro de si. A herança do avô é uma ideia que acompanha o livro todo e que vocês terão que ler para descobrir…rsrs Ponciá me tocou como poucos personagens me tocaram nessa vida. Fala de tantas coisas, toca em tantas feridas.
“Ponciá gastava a vida em recordar a vida. Era também uma forma de viver. As vezes era um recordar feito de tão dolorosas, de tão amargas lembranças que lágrimas corriam sobre o seu rosto. Outras vezes eram tão doces, tao amenas as recordações, que de seus lábios surgiam sorrisos e risos. A mãe e o irmão eram sempre matéria de sua memória. Tanto tempo já tinha se passado. Quando se encontrariam juntos os três: Parte de sua vida era o desejo para que isso acontecesse. Porém nada fazia, a não ser ficar ali, calma, sentada, quase inerte. Era preciso esperar. E era isso que ela estava fazendo havia anos. Fazia o que suas forças permitiam. Só lhe era possível esperar. “ (Livro Ponciá Vicêncio, p.79/80)
Mas, depois de Ponciá, tem Becos da Memória. Nele, Conceição reescreve lembranças, memórias, vivências. Mas faz isso de um jeito único, peculiar. Ela faz isso através da escrevivência. Narra histórias de uma periferia. Becos que estão na memória dela. Gosto especialmente de um parágrafo na apresentação do livro.
“Também já afirmei que invento sim e sem o menor pudor. As histórias são inventadas, mesmo as reais quando são contadas. Entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção. Nesse sentido, venho afirmando: nada que está narrado em Becos da Memória é verdade. Nada do que está narrado em Becos da Memória é mentira.” (Livro Becos da Memória)
Becos da Memória traz tantos personagens enigmáticos, intensos. Entre eles, a Vó Rita, que dormia embolada com a Outra. Essa parte é um mistério do livro. Porque Vó Rita dormia embolada com a Outra? Porque a Outra se esconde de todo mundo? Porque ninguém pode ver a Outra? Evidente que não vou contar para vocês. Ahhh!!! como assistente social, professora em curso de Serviço Social tem um trecho em Becos da Memória que eu ri. De nervoso. Acompanhem comigo.
“Ninguém acreditava na possibilidade de nada. Quantos políticos e outros profissionais haviam subido o morro, prometendo mundos e fundos! Repórteres de grandes jornais haviam feito emocionantes entrevistas. Um canal de televisão dera longa cobertura. Assistentes sociais, bondosas, caridosas, cujos cursos de faculdade lhes davam uma pretensa visão do mundo, da realidade…. (Livro Becos da Memória, p.153)
Entenderam o meu riso nervoso? Não posso dizer que ela está cem por cento errada. Mas deixemos o assunto embaraçoso e vamos para Insubmissas Lágrimas de Mulheres.
Insubmissas Lágrimas de Mulheres é um livro de contos. Lindo, profundo, feminino. Traz treze histórias de mulheres. O título de cada conto é o nome da mulher-personagem. Tem mulher de tudo quanto é jeito e histórias com enredos envolventes e perfeitos. A minha história predileta é de Shirley Paixão que tentou matar a facadas o “seu” homem quando ela descobriu que ele abusava de sua própria filha.
“Encarei o homem, que ainda era meu marido. Ele olhava de modo estranho para a filha. Temi por ela e por mim. Gritei, com raiva, para que ele saísse da sala e me deixasse com Seni, que era filha dele – Não era tanto assim, já que ele não tinha por ela o amor de pai. Abracei minha menina de doze anos. A que eu não tinha parido, mas que tinha certeza ser ela também minha filha. Por ela e pelas outras eu morreria ou mataria, se preciso fosse. E necessário foi o gesto meu de quase matá-lo. Foi com uma precisão quase mortal que golpeei a cabeça do infame. Ao relembrar o acontecido sinto o mesmo ódio. Repito que não me arrependi.” (Livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres, p.30/31)
Mas tem também histórias menos pesadas. Eu sou escorpiana né amores. Gosto de histórias com dramas, violências, vinganças. Para quem gosta de histórias menos pesadas, tem outros contos lindos.
E falando em contos, temos o premiado “Olhos d’agua”. São 15 histórias. De vida, morte, amor, ódio, sexo, afeto. São histórias de resistências e desistências. São histórias vivas. Ana Davenga e seu homem estão por aí, em qualquer periferia da vida. Bica, Natalina, Duzu, Cida, Kimbá também. Personagens densos, complexos, apaixonantes. A minha história predileta nesse livro é a de Bica, no conto “ A gente combinamos de não morrer.” Bica, encontra na escrita um jeito de resistir. Gosto especialmente da forma como Conceição termina esse conto:
“Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperança outras bocas. (…) Eu aqui escrevo e relembro verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito…” (Livro Olhos d”agua, p.109)
Ainda no campo dos contos temos “Histórias de leves enganos e parecenças”. Na minha leitura, o mais místico e surreal de Conceição. Se nos outros livros de contos de Conceição a realidade teima em aparecer por cima das letras habilmente enredadas, nesse, a fantasia corre solta, livre. Gosto do conto “A moça de vestido amarelo”, onde em sua primeira comunhão, a menina em vez de rezar a Ave Maria, tão bem ensaiada, canta e dança suavemente como se tocasse as águas de um rio. Juntando com o sonho que tivera na noite anterior, com Nossa Senhora de vestido Amarelo, temos a tradição das religiões de matriz africana lindamente escancarada. Mas do livro todo, me impressionou Madrepia, que tinha uma cobra chamada Cobra Serena, que morava dentro dela.
“O réptil toda noite, quando a mulher ia lavar o rosto, assim como todas as faces de seu corpo, surgia do fundo do lavabo adentrando vagarosamente o corpo de Madrepia. E depois de ter se alojado, dentro dela, ficava ali, aninhado no coração da mulher, para aliviá-la da solidão e das saudades, que apesar de tudo ela sofria dos seus.” (Livro Histórias de leves enganos e parecenças, p.70)
E por fim, temos o último livro publicado de Conceição Evaristo, que é uma coletânea de poemas. Em Poemas da Recordação e Outros Movimentos cada poema é mais lindo que outro. Cada um mais profundo que outro. Eu encerro esse texto, com “Da Calma e do Silêncio.” Foi por esse poema que conheci Conceição Evaristo. Já gravei vídeo declamando, já li em muitas ocasiões, mas continua me tocando a alma. Espero de coração que leiam Conceição Evaristo. Precisamos da força da escrita de Conceição em nossas vidas. E esse texto é a minha contribuição. Um pouco das minhas impressões do que li dela.
“Quando em morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
Se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés,
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silencio
da poesia penetra.
(Livro Poemas da Recordação e Outros Movimentos, p.124)