A necessidade de rompimento com a religiosidade e disciplinamento no trabalho social com famílias na política de assistência social

*Esse texto foi produzido para minha participação no Encontro do Grupo de Estudos e Capacitação Continuada de Trabalhadores do SUAS (GECCATS) de 06 de outubro de 2022

A assistência social no Brasil é uma política pública, proposta na Constituição de 1988, regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) de 1993 e sistematizada através do Sistema Único de Assistência Social (SUAS, Lei 12.435 de 2011). Contudo, a assistência social como prática de auxílio humanitário tem um histórico anterior no Brasil, ligado a filantropia, caridade e religiosidade. A consolidação da assistência social enquanto política pública é um desafio também histórico, na medida em que existe a necessidade de romper, nos espaços dessa política, com as práticas de cunho caritativo e filantrópico. Tal rompimento é necessário pois, basicamente, as práticas caritativas e filantrópicas estão centradas na pessoa que faz e a assistência enquanto política pública deve estar centrada no direito da pessoa que recebe.

E é aqui que, mais especificamente, se inicia a discussão que proponho nesse texto. O trabalho com famílias nos espaços da assistência social ainda é atravessado por práticas que, por vezes, resvalam em ações de disciplinamento que tem como base uma perspectiva moral, fundada em valores religiosos.

O que significa isso? Significa dizer que ao analisar a situação de determinada família e construir ações de enfrentamento e superação da realidade analisada, ainda persistem critérios de cunho moral e essa moral é, na maioria das vezes religiosa de base cristã.

Entre os fatores que poderiam ser apontados para explicar a permanência dessa abordagem, acredito que estão a formação histórico social do Brasil (e porque não dizer América Latina) e a inversão da perspectiva dos sujeitos envolvidos no processo da assistência social.

No que diz respeito a formação histórico social do Brasil e da maioria dos países da América Latina, a constituição desses países se dá sob o domínio da Igreja Católica Apostólica Romana. A colonização enquanto um sistema de exploração econômica, genocídio  e/ou escravização dos povos originários, escravização dos povos africanos, se fez nesses países, debaixo das bênçãos da referida Igreja. Eduardo Galeano, no clássico “As veias abertas da América Latina” vai dizer que para esses lados de cá, no período da colonização, a “espada e a cruz marchavam juntas na conquista e na espoliação colonial” (GALEANO, 1986, p.32).

Dessa forma, quando falamos de Brasil, é possível afirmar que o país é construído a partir da imposição do cristianismo enquanto religião. Basta lembrar das imagens e marcos do “Descobrimento”: Uma cruz fincada e uma missa celebrada para marcar a posse do novo território. 

O cristianismo de base católica vai ser a religião imposta no Brasil desde o período colonial e mesmo que nas últimas décadas tenha ocorrido uma movimentação com deslocamento da base para o eixo pentecostal, temos a permanência da referência cristã na constituição do país. Aqui vale destacar que não se trata de uma abordagem de fé enquanto escolha individual, mas de uma análise no contexto sócio histórico da religião, enquanto fenômeno social.  

E assim chegamos na necessidade de pensar a partir dos paradigmas que diferem a política da assistência social da filantropia e caridade cristãs e que na minha leitura, o principal deles está na necessidade de inverter a perspectiva dos sujeitos.

A caridade e filantropia cristãs se dão na perspectiva do sujeito que assiste. (Sujeito esse que pode ser individual ou coletivo) Ou seja, o ponto de partida da ação é a motivação do sujeito que assiste e tal motivação pode ser por ‘amor ao próximo”, “obediência ao Evangelho”, “se colocar no lugar do outro”, “alcançar alguma Graça”, “fazer como quem faz para Deus”, ou qualquer outra definição que vai apontar a centralidade no sujeito que faz. A grande maioria das referências bíblicas de caridade também estão centradas no sujeito que assiste. É ele que é chamado a ação.

A assistência social enquanto política pública precisa ser construída a partir do sujeito que é assistido. Ou seja, não importa a motivação e os valores do sujeito que assiste, mas sim a necessidade de quem será assistido. Tal necessidade é a centralidade da ação.

Esses dois aspectos (formação histórico social do Brasil e a inversão da perspectiva dos sujeitos envolvidos no processo da assistência social) são dessa forma, centrais para o que eu estou chamando aqui de religiosidade e disciplinamento no trabalho social com famílias.

Mas é possível romper com isso, como diz o título do texto? Evidente que sim. Por isso insistimos tanto nesse debate. Para finalizar esse texto, vou apontar aqui três estratégias que considero estruturais para esse rompimento, mas que vocês podem a partir daí, melhorar, aprofundar, ampliar, construir outras.

  • Estratégia 1: Reconhecer a diversidade do povo brasileiro

Ainda que existam tentativas de homogeneizar cultura e religiosidade no Brasil, a realidade não é essa. Basta abrir os olhos e olhar de fato para a realidade brasileira. Todo mundo é cristão? Não. Essas pessoas que não são cristãs são más? Não. Essas pessoas que não são cristãs devem ser ignoradas? Não. Essas pessoas que não são cristãs possuem menos direitos que as que são cristãs? Não. O povo brasileiro é diverso e, como tal precisa ser respeitado. Como reconhecer essa diversidade? Entendendo que determinada família pode ter valores, história, cultura diferente de outras. Entendendo que nos serviços da assistência social não tem espaço para uma ou outra religião porque ali existem pessoas diferentes. Entendendo que os espaços e atividades precisam ser plurais, precisam ser pensados para a diversidade. Para que, por exemplo falar em pecado em espaços que não tem como objetivo converter pessoas? Para que, por exemplo, apontar a educação de filhos dentro dos valores bíblicos em uma atividade do Centro de Referência da Assistência Social?

  • Estratégia 2: A ênfase na assistência social enquanto direito

A assistência social é direito. Ou seja, no Brasil, caso a pessoa necessite, ela tem direito a ser assistida. Por causa disso existem os impostos, para se criar um fundo público a ser utilizado nessas situações. Todo mundo contribui de alguma forma. Então, a pessoa que está buscando determinado serviço, ela tem esse direito. Então, não é favor, não é ajuda. Ela não precisa “ser boazinha”, ela não precisa ter valores cristãos, ela não precisa concordar com o que está sendo dito. Ela tem direito.

  • Estratégia 3: A superação da perspectiva de quem faz

As unidades de atendimento da política de assistência social trabalham para atender a população que necessita desses serviços. Ou seja, a perspectiva é a necessidade de quem é atendido. Mas infelizmente, não são poucos os profissionais que mesmo estando nesses espaços, não entendem a centralidade da política. Nessa direção, eu retomo um texto já publicado aqui no meu blog onde eu abordava os direitos da população LGBTQIA+ e o Serviço Social. Aqui vou atualizar para a questão dos trabalhadores do SUAS em geral. As pessoas que trabalham nos espaços da política de assistência social podem ser o quiserem, podem ter a fé que quiserem, podem ter os princípios que quiserem. Quando essas pessoas forem procuradas, enquanto pessoas, podem ter as atitudes que acharem convenientes (respondendo por elas inclusive).Contudo, quando estão prestando serviços à população nos espaços da assistência social, representam, o Estado e o Estado existe para atender os interesses comuns, gerais, públicos. Os trabalhadores do SUAS atuam, portanto, para atender os interesses comuns, gerais, públicos. Ou ainda, buscando garantir direitos. Acontece que determinados profissionais parecem entender que é preciso garantir apenas alguns direitos, para alguns indivíduos. Quer pensar assim? OK. Mas então, não pode trabalhar com serviços públicos. Talvez abrir uma empresa, fundar uma ONG (Sem dinheiro público) e então atender somente a partir da perspectiva de quem faz.

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