Ela acordou as seis da
manhã, sem despertador, mas também sem plenitude. Queria acordar plena, diva,
Beyonce do cerrado. Mas ao invés disso acordou como se tivesse voltando pro
corpo, abriu os olhos no melhor estilo Avatar e se situou. Pronto. Era quarta
feira. Nem segunda, nem sexta. Nem terça, nem quinta, mas quarta. Meinho
da semana. Quarta era dia de arroz com frango, de pão com manteiga cedo e as
vezes de pão doce a tarde. E como era quarta, não segunda e nem sexta, ela
levantou, colocou a roupa de quarta e penteou o cabelo a moda de quarta. Fez
café pra si, esquentou o pão de terça e agora já pronta, saiu pra rua. Era oito
em ponto quando chegou na sala que dividia com mais três. Colocou a bolsa nas
costas da cadeira e sentou-se silenciosa. Os papéis foram brotando, brotando.
Se reproduzindo num fornicar mágico e místico. Ela os juntou e começou a
análise. As horas passam. Ela não está ali mesmo que o corpo continue sentado, os olhos analisando papéis e
as mãos os colocando em escaninhos diversos. Ela está lá onde ninguém a
conhece, onde ninguém a julga, onde ninguém lhe pergunta por que. Ela está onde
não riem dela, onde não lhe batem, nem lhe xingam. Ela está longe…bem longe.
Mas então as palavras mágicas lhe tiram do transe: Gente, hora do almoço. Ela
vai pro refeitório junto com a manada, sempre ruidosa nesse horário. Não lhe
interessa o arroz com frango da quarta. Só lhe interessa não ficar sozinha na
sala. Nas duas vezes que isso aconteceu deu ruim prá ela. Aliás sempre dá ruim
pra ela, estando certa ou não. Melhor evitar e descer pra comer afinal ir com a
manada representa segurança. Nada de felicidade ou identidade. Segurança.
O almoço transcorre sem
eventualidades. Na volta pra sala, mais papéis naquele “rodopio de
arrepiar”, na profusão orgistica de papéis.
– Glória você pode ir no RH? Ela levanta rápida antes que possa ouvir os
murmúrios. Pega a bolsa e vai firme. Uma escultura de 1,80m passando por aquele
corredor estreito. No RH a mesma história. Trabalha bem. Tem experiência com a
função mas não estava se adaptando ao ambiente empresarial. E lá se vai ela de
novo. Expulsa.
É com uma sensação dolorosamente familiar que ela passa na padaria, chega em casa e senta pra comer seu pão doce com café. É a quarta vez esse ano que ela consegue ser contratada nas mais diversas funções pra ser demitida depois com a mesma justificativa. E ainda é só Abril.
A noite chega e a encontra do mesmo jeito: Sentada no degrau que separa a cozinha do quintal, a xicara com um pouco de café frio e a mão ainda melada da cobertura do pão doce. Ela gosta dessa sensação. Lembra tempos de uma infância onde a cobertura do pão doce se transformava em batom, prá desespero da mãe e surras homéricas do pai. Mas a sensação daquela gordura doce nos lábios valia a pena. Ela volta para o presente. Pensa nos currículos que vai entregar na quinta. Não vão conseguir que ela desista. Não dessa vez. Gloria olha pra casa onde mora. Uma quitinete no Centro velho da cidade, a única que o dinheiro da pra pagar. Não pode voltar. Não vai voltar. Querem lhe dizer que a rua é seu lugar. Querem lhe empurrar pra noite. Mas ela não vai voltar. Vai insistir. Gloria toma banho, engole os remédios pra dormir e prepara a bolsa com os documentos para quinta.
O currículo diz Gloria Nascimento. O cheque e os documentos de rescisão do contrato de trabalho estão preenchidos para Hernandez Souza. Ela já não liga pra isso. Vai continuar lutando. Sonhando com dias de Glória.