Direitos da população LGBTQIAP+ e Serviço Social: Algumas considerações iniciais

O Serviço Social é uma profissão que existe no Brasil há mais de 80 anos. Em termos muito sintéticos, é uma profissão que nasce vinculada a um projeto de hegemonia burguesa que busca, naquele momento, estabelecer estratégias de controle da classe trabalhadora, atendendo a demandas assistenciais pontuais e emergenciais dessa população, mas tendo como horizonte a garantia das condições mínimas para reprodução da força de trabalho, elemento essencial para a continuidade da sistema capitalista.

Esse projeto de hegemonia burguesa vai se solidificando a partir de ações referenciadas pelo Estado (que é sempre representante de uma classe) e pela doutrina cristã, que na época do surgimento da profissão tem como expressão principal a Igreja Católica.

A profissão faz uma caminhada histórica de rompimento com esses referenciais, com essa “identidade atribuída” (Martinelli) e a partir das décadas de 1960 e 1970,  com o Movimento de Reconceituação, busca estratégias de ruptura com a  alienação, construindo uma atuação que, em síntese, garanta direitos.

Até aqui, nada de novo não é? Parece aula de Fundamentos. rsrsrsrs Mas precisamos justamente voltar as aulas de Fundamentos Históricos, Teóricos e Metodológicos do Serviço Social para entender o quanto precisamos avançar quando o debate é a garantia de direitos.

O Serviço Social tem hoje um Código de Ética que preconiza a liberdade como valor ético central. Dizer que a liberdade é valor ético central não está limitado ao entendimento da liberdade na perspectiva neoliberal, ou seja, de consumo, de esforço individual, de respeito apenas a individualidade. Não, a liberdade defendida no Código de Ética do Serviço Social diz respeito a possibilidade de ser de forma integral. Defender a liberdade como valor ético central, significa defender que as pessoas possam ser quem elas quiserem.

Até aí tudo bem não é? Mas tenho ouvido de muitxs profissionais de Serviço Social o seguinte: “Tá, as pessoas tem direito a ser o que elas quiserem, mas eu tenho o direito de achar que elas estão erradas.”. Hummmm, aí começa a questão.

Para profissionais que fazem a defesa intransigente do projeto ético político, essa fala chega a dar comichões. Só que, de forma geral, a gente responde de forma que deixa espaço para questionamentos. Porque a gente tenta convencer as pessoas da importância da luta, do quanto as convicções pessoais, religiosas interferem no processo de construção de uma sociedade justa, onde as pessoas possam ser quem elas são. Mas não adianta muito. Pelo menos para o que eu tenho visto.

E daí, esse texto. As pessoas que fazem Serviço Social podem ser o quiserem, podem ter a fé que quiserem, podem ter os princípios que quiserem. Quando essas pessoas forem procuradas, enquanto pessoas, podem ter as atitudes que quiserem (ainda que sejam atitudes que não gostamos). Contudo, quando estão prestando serviços à população, representam, na maioria das vezes, o Estado e o Estado existe para atender os interesses comuns, gerais, públicos.

Quando digo que representam na maioria das vezes, o Estado, estou me referindo ao fato que hoje, profissionais de Serviço Social têm nos serviços públicos (execução direta nos órgãos públicos ou indireta no Terceiro Setor) o maior espaço de trabalho. Só olhar ao seu redor. Quantxs assistentes sociais que você conhece que trabalham em empresas privadas?

Nós, profissionais assistentes sociais, trabalhamos majoritariamente com serviços públicos, ou seja, buscando atender os interesses comuns, gerais, públicos. Ou ainda, buscando garantir direitos.

Acontece que determinados profissionais parecem entender que é preciso garantir apenas alguns direitos, para alguns indivíduos. Quer pensar assim? OK. Mas então, não pode trabalhar com serviços públicos. Monte uma empresa, funde uma ONG (Sem dinheiro público) e vá atender somente aquilo que não fere sua fé, seus valores.

Acho que já ficou evidenciado o que tudo isso tem a ver com a população LGBTQIAP+. Mas caso ainda não, vou ser ainda mais direta. A população LGBTQIAP+ têm feito uma luta no Brasil para garantia de direitos. Quanto aos direitos ainda não reconhecidos, precisarei de um outro post pra explicar porque o Serviço Social precisa reconhecer essa luta. Passa inclusive pelo debate do contrato social apontado por Rosseau. Mas nesse post, meu assunto é com os direitos    já reconhecidos pelo Estado. Independente do que diz sua fé, suas convicções, orientações, se você está prestando serviços públicos, é seu dever ético garantir esses direitos.

Vou trazer um exemplo pra auxiliar o entendimento do que estou propondo: Aline (nome fictício) é enfermeira. No aspecto religioso ela é Testemunha de Jeová. Os fiéis desse segmento não podem fazer transfusão de sangue.  Aline trabalha num hospital. Independente da fé da Aline, ela vai ter que trabalhar com transfusão de sangue. O que ela pode fazer? Não trabalhar no hospital? Criar um hospital particular, sem recursos públicos que não faça transfusão de sangue? Pedir perdão a Jeová por causa de cada transfusão de sangue que ela ajuda fazer? São opções nas quais a Aline vai ter que pensar. O que não é opção para a Aline é proibir, ou inviabilizar as pessoas a terem acesso ao direito da transfusão de sangue porque fere a fé dela.

Tenho certeza que já entenderam.

Notinha: LGBTQIAP+:Sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros/Transexuais/Travestis, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Agenero, Panssexual/Polissexual e mais. (Fonte: MOTA, Paula. Generos Não Binários: A Construção Social do Conceito. UFTM. Trabalho de Conclusão de Curso em Serviço Social. Uberaba, 2019)

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