A terça-feira começa a desenhar-se no horizonte. Mais um dia que amanhece. Das Dores se levanta antes do sol, faz o café. Sempre que levanta-se antes do sol, ela canta mentalmente a música de Raul Seixas “Amanhece, amanhece, amanhece, amanhece, amanhece o dia. Um leve toque de poesia, com a certeza que a luz que se derrama, nos traga um pouco, um pouco, um pouco de alegria”.
Ainda com a canção de Raul na mente, Das Dores pega o celular, olha o grupo da família e o grupo das irmãs da igreja. Mensagens de bom dia, mensagens sobre o Brasil. Tantas mensagens que ela já não sabe mais o que é verdade. A filha mais velha vive dizendo que deveria existir um aplicativo de controle para os filhos nos celulares dos pais e assim evitar que eles compartilhem as tais fake news. Ela sorri. A filha, aquariana nata, com sol, lua e mais umas três casas do mapa em aquário, está sempre atenta às questões do mundo. Mas ela, Das Dores, nem liga para essas coisas. Seu mundo é outro.
Enquanto toma o café com o que sobrou do bolo de sábado, olha a casa onde vive e pensa que parece que o tempo é seu inimigo. Quando ela não quis, ele passou rápido. Rápido demais. Ontem era uma menina cheia de ilusões; a Mary, como os amigos gostavam de dizer. Hoje, uma velha louca, como dizem. Quem olha Das Dores, diz que ela tem bem mais que 60 anos. Enganam-se. Tempo passou rápido. Demasiadamente rápido. Mas, paradoxalmente, os últimos anos parecem se arrastar, e o tempo, maroto, parece que faz questão de ir devagar… devagar.
Das Dores olha para sua casa e nesse olhar é como se encontrasse a si mesma. É uma mulher de 53 anos que mora sozinha em sua casa, cheia de fotos, artesanatos, lembranças. O primeiro marido, pai da filha mais velha, morreu quando a menina tinha 7 anos. Das Dores criou a filha sozinha até quando a menina fez 12 e ela 30. E então, no serviço conheceu Marcos, sorriso gostoso, conversa mansa. Três meses depois moravam juntos e, 3 anos depois, ela já tinha mais 02 meninos. Aos 35, mãe de 3 filhos, Das Dores e Marcos divorciaram-se e, desde então, nenhum outro homem ocupa seu coração libriano, com ascendente em Peixes, como gosta de ressaltar.
É essa Das Dores que está tomando café com bolo na cozinha de sua casa, numa manhã de terça-feira. Mulher aos 16, mãe aos 18, Esposa aos 20, viúva aos 25, divorciada aos 35 e louca aos 50. Ela ri sozinha dessa última parte. É o que a maioria das pessoas pensam sobre ela. Mas já não liga. Só espera o tempo passar.
Café tomado, ela volta no quarto com o último pedaço do bolo de fubá e alimenta o pássaro que está na gaiola do lado da cama. Conversa com ele, afaga a cabeça do bichinho. Diz que a mamãe vai trabalhar, mas que logo volta para cuidar dele. Abre a janela do quarto pro sol entrar pelas grades de segurança durante o dia. Entra no banheiro, troca de roupa e sai rumo ao trabalho. Mas antes de sair, um último afago em Natinho, o pássaro, e um pedido mudo de desculpas. Pássaros não foram feitos para viver em gaiolas, a mãe sabe disso. Mas tudo isso vai tudo passar, promete para Natinho.
Já no serviço, Maria das Dores, segue igual aos últimos 20 anos. Lembra com alegria de quando entrou no concurso para ser recepcionista na Prefeitura. 20 anos passaram-se mas ela ainda gosta de estar lá. Gosta da sua agenda renovada todo ano (ainda que agora exista os programas do computador) da mesa com as canetas, os papéis com timbre onde ela escreve com sua letra redonda e miúda. O dia passa e quando percebe já é hora de retornar pra casa. Retornar pra Natinho.
Chega em casa, dá comida para Natinho, conta pra ele como foi o dia. O pássaro canta um canto melancólico como se entendesse do que ela fala. Das Dores leva a gaiola pra cozinha e enquanto faz a janta, vai conversando com o pássaro, contando as novidades, da igreja, da família, do Brasil. Você viu na televisão Natinho, aquela história? Triste né. Sabe a Marina, do Paulo? Então está grávida de novo. Parece que vai ser outro menino. Ah!! a nossa vizinha, também vai mudar. E nessa conversa termina a janta. Vai tomar banho. A gaiola fica do lado de fora da porta.
Depois do banho, a janta. Natinho come sua ração especial e de sobremesa tem fruta. Houve uma época que ele comia a mesma comida, mas ficou doente e depois da orientação veterinária, só come dieta balanceada e as vezes um afago como o bolo de fubá da manhã. Fim do jantar, TV na sala, e o sono vem. Das Dores desperta do cochilo com o canto de Natinho. Hora de ir dormir. Leva a gaiola, coloca ao lado da cama. Dobra os joelhos e faz uma prece silenciosa. Dorme.
E a quarta-feira amanhece. Mais um dia. Sempre igual. Vão se sucedendo. Dias. Semanas. Meses. Anos. Os sábados são diferentes porque é aos sábados que as duas netas vêm para visitar a avó e seu pássaro. Dia de alegria, inclusive pra Natinho, que fica agitado, como se quisesse sair da gaiola. Os domingos são tristes. Daquelas tristezas coletivas, cansativas. Mas então, acaba o domingo e ela volta para os cuidados com seu pássaro, ou melhor, com seu filho.
Das Dores trata o pássaro como filho. No início tentaram remédios, orações, conselhos. Tudo em vão. Por fim desistiram. 04 anos já passaram desde aquele dia quando o pássaro bonito pousou no quintal e duas horas depois acabou preso na armadilha de Das Dores que agora segue vivendo por e para Natinho.
Mandou fazer uma gaiola especial para ele, ampla, com poleiro e pequenos vasinhos de suculentas. As vasilhas de água e comida, sempre impecáveis, lavadas todos os dias. A ração balanceada, as frutas, as sementes são gastos que para os filhos é loucura, mas pra ela não tem valor material algum. O que vale é Natinho estar bem.
Uma vez por semana ela leva a gaiola na rua, pra Natinho ver o movimento. Ficam ali compondo um quadro triste, melancólico, cheio de simbolismos e mistérios. A velha e o pássaro. Nesses dias chora. Como se o coração estivesse atravessado por uma flecha, pede desculpas para o seu Natinho. Pergunta porque tinha que ser assim e promete que logo ele será livre.
Ela continua dizendo para o pássaro e para quem estiver passando na rua ouvir, que não tem culpa se eles não deixam seu pássaro voar. A culpa é deles. Pássaros foram feitos para voar e não para viver em gaiolas. Mas Natinho ainda não pode partir agora. E o choro volta. O pássaro permanece em silêncio parecendo entender a tristeza de Das Dores. Nesses dias também não canta. E nesse ritmo vão vivendo, se entendendo. Os últimos 5 meses, especialmente, foram de uma angústia sem precedentes
Das Dores ansiosa, redobra os cuidados com Natinho. E conta pra ele que está chegando o dia que ele será livre, o dia que a gaiola vai abrir e ele vai voar. Mas ela precisa esperar que os homens autorizem.
E então aconteceu. Uma terça-feira.
O rapaz magro, cabeça raspada, olhar meio perdido, chinela havaiana e uma sacola de plástico na mão chega no portão. Ninguém diria que só tem 24 anos. Ela olha para ele e naquele olhar entre mãe e filho tudo faz sentido, tudo ganha significado. Renatinho está de volta. Renascido depois de 5 anos preso. Das Dores abraça o filho. Ele pede licença pra sentar. Ela chora. Como assim, filho? A casa é sua. Sabe como é mãe. Cinco anos pedindo “licença senhor” até para levantar os olhos. Das Dores vai ao quarto, traz gaiola. Abre. Natinho voa e pousa no muro. Renatinho acompanha o movimento. Os pássaros de Das Dores estão soltos.