A questão racial negra na universidade é uma questão de permanência estudantil?

A questão racial negra no Brasil é, por assim dizer, estruturante das relações
sociais com expressões dessa questão em todas as formas através das quais
se constrói sociabilidade nesse país. Como questão racial negra, estamos
entendendo aqui o conflito originado na realidade da existência da população
negra e a tentativa histórica de apagamento dessa existência. O racismo é,
talvez, o elemento mais expressivo e conhecido dessa questão, mas temos
identidade, cultura, resistência e diversas outras dimensões que configuram o
que eu ouso apresentar nesse texto como questão racial negra.


Na Universidade, especialmente a pública, a questão racial negra sempre foi
objeto de estudo, até mesmo porque, como espaço privilegiado para a
produção de saberes, a universidade não está isolada da sociedade,
produzindo conhecimentos a partir da realidade onde está inserida, ainda que
por vezes não reconheça tal vinculação. Talvez esse trecho cause estranheza,
uma vez que afirmo que a questão racial negra sempre foi objeto de estudo na
universidade. Sim, sempre foi objeto de estudo numa perspectiva de quem olha
de fora, de quem olha “de cima”, de quem faz estudos e pesquisas sobre o
“outro”. Parafraseando o que me disse uma ocasião a Professora Isis Conceição, a
universidade está cheia de “gente que estuda preto”.


Nina Rodrigues, ainda no final dos anos 1800, dentro da universidade, já
desenvolvia pesquisas com o viés da questão racial negra. Contudo, os
estudos de Nina vão apontar, por exemplo, que o componente racial era não só
a explicação para algumas doenças, como também para a predisposição para
a criminalidade. O médico Nina Rodrigues, no final dos anos 1800, já estava
assim discutindo a questão racial negra dentro da universidade. Mas de que
forma era feita essa discussão?


A partir de que viés se dá a discussão da questão racial negra, dentro da
universidade, talvez seja a pergunta mais acertada a se fazer, e é dela que
parto para refletir sobre isso na contemporaneidade. Sim, sempre se falou da
população negra na universidade. Sim, a questão racial sempre esteve presente, especialmente como problema, dificuldade a ser enfrentada e superada.


Contudo, a partir de 2012, essa questão se materializou dentro da universidade
pública. Falar de questão racial negra em seus mais diversos componentes
(racismo, cultura, identidade) passou a ser falar do colega de sala, da pessoa
discente que está em projetos de pesquisa e extensão. A questão racial negra
passou a manifestar-se na universidade em carne, osso, cabelo, cor de pele,
formato de nariz e quaisquer outros fenótipos que se queira apontar.


Como falar do objeto de estudo, se o objeto de estudo está aqui agora?
Seria possível deixar de estudar a população negra, para estudar com a
população negra? Existiria uma categoria única chamada “negro”?


As pessoas negras que estão adentrando na universidade a partir da metade
da primeira década do século XXI, estão tendo que lidar com esse
“estranhamento” da universidade, que também se vê às voltas com o próprio
estranhamento. Ou seja, a universidade, de forma geral, se coloca como
espaço aberto e atento a questão racial negra (“Prezados, temos vanguarda
nesse debate no Brasil”, é o que poderia ser traduzido da fala de alguns
autores e pesquisadores acadêmicos) mas essa questão é percebida de forma
enviesada e o resultado é que não se tem a disposição para entender que
existem outras demandas e dessa forma, os espaços universitários vão se
tornando hostis a presença desse “objeto de estudo”.


Por outro lado, as pessoas negras que adentram nesse espaço, mesmo não
encontrando possibilidades de se reconhecerem nele, não podem falar sobre
isso, afinal “onde mais se tem tanto respeito assim a questão da diversidade”?
E nesse, estar sem estar, essas pessoas negras acabam tendo que lidar com o
ser, sem ser.


A universidade que “pesquisa a diversidade”, que desenvolve “projetos de
extensão com a diversidade”, não “ensina a diversidade”. Nesse desencontro
histórico, o não ensinar a diversidade acaba se sobrepondo, na medida em
que, no tripé ensino, pesquisa e extensão, sobrepõe-se o ensino. A conclusão
é bem fácil: Se, na atividade considerada principal da universidade, “a questão
racial negra” não existe, continua a lógica do objeto de estudo.

Para o trabalho do Serviço Social na permanência estudantil, esse debate é
extremamente necessário, na medida em que, ao atendermos discentes em
situação de vulnerabilidade, o componente racial se evidencia.


A política de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas,
possibilitou da juventude negra na universidade. Desse contingente de
estudantes cotistas, parcela significativa apresenta situação de vulnerabilidade
econômica, recorrendo, portanto, a assistência estudantil para efetivar a
permanência nesse espaço.


Como profissionais que atuam na permanência estudantil nas universidades,
assistentes sociais não podem ignorar a questão racial negra nesse espaço. A
pessoa estudante negra vai ter demandas que configuram de forma ímpar as
suas condições de permanência.


Nessa direção entendemos que, assistentes sociais que atuam com
permanência estudantil no ensino superior, precisam desenvolver algumas
ações estruturantes que garantam às pessoas negras discentes, condições de
permanência estudantil. Trata-se de ações pautadas no compromisso com a
equidade, acessibilidade, inclusão e pertencimento e não apenas de busca da
igualdade.


A guisa de conclusão desse texto, eu quero pontuar três aspectos que
possibilitam para assistentes sociais trabalharem na perspectiva do
entendimento de que existe uma questão racial negra na universidade e que
esta é uma questão de permanência estudantil.


O primeiro aspecto diz respeito a visibilidade da questão racial negra nas
ações do Serviço Social na permanência estudantil
nas universidades. As
demandas da população negra não podem ser registradas sem fazer referência
ao grupo racial a que esta população pertence. Ou seja, quando discentes
procuram o Serviço Social para queixar-se de, estar sofrendo “cancelamento”,
ou quando procuram o Serviço Social para solicitar auxílio emergencial, o
pertencimento racial desses discentes é fundamental para compreensão da
realidade vivenciada. Então, para que o Serviço Social na permanência
estudantil desenvolva ações para equidade e pertencimento racial é preciso
enxergar a questão racial nas demandas do cotidiano.


O segundo aspecto diz respeito ao registro técnico das demandas que se
relacionam com a questão racial
. Ainda que muitas vezes se perceba a questão racial nas ações do cotidiano, essa demanda não é registrada nos
diários de trabalho, relatórios, planos e projetos. Como trabalhar uma questão
que não existe “oficialmente”?


O terceiro aspecto faz referência a necessidade de conhecer efetivamente
as pessoas com as quais se trabalha
, e nesse texto, estou me referindo
especificamente as pessoas negras. Quem são essas pessoas discentes?
Quais os interesses e expectativas delas? Como podemos desenvolver ações
que de fato contemplem as necessidades delas?


A partir dessas aproximações é possível começar a pensar em um trabalho na
permanência estudantil que reconheça a questão racial negra, de fato, na
universidade. Como fazer esse trabalho? Esse é assunto para outro post.

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