O Serviço Social e o adolescente chicoteado no supermercado

No começo de Setembro, um adolescente negro de 17 anos, foi amarrado e chicoteado em um supermercado em São Paulo, acusado de roubar chocolates. O caso tornou-se público devido à divulgação do vídeo com a tortura que imediatamente ganhou as redes sociais no Brasil, com comentários diversos, com um ligeiro destaque para aqueles que classificavam a ação como abuso, tortura, violência gratuita. Como no tempo presente tudo é muito meteórico, quinze dias depois já não se fala mais nisso.

O propósito desse texto não é retomar a discussão acerca da violência, da questão racial, da defesa da propriedade privada acima da vida humana. Penso que tais debates já foram realizados de forma contundente em verso e prosa em diversos espaços aqui nas mídias sociais.

A análise que proponho aqui é em relação ao Serviço Social. O supermercado onde ocorreu o fato, divulgou uma nota onde classificava a ação como “tortura gratuita” e a repudiava, informando que os seguranças que praticaram o ato pertenciam à empresa terceirizada e foram dispensados, não compondo mais o quadro funcional do estabelecimento.

No final da nota que foi publicizada, o supermercado afirma que irá “dar todo o suporte que for necessário” e que já “disponibilizou uma assistente social para conversar com a vítima e a família”. E aqui temos o ponto de partida para a reflexão que quero propor. Por que uma assistente social? O que uma assistente social vai fazer nessa situação?

As duas perguntas se relacionam com um debate que sempre é feito pela nossa categoria profissional de assistentes sociais e que diz respeito ao que é denominado como “identidade profissional do Serviço Social”. Essa identidade faz parte do histórico da profissão.

Em sua gênese e institucionalização, o Serviço Social atuava com uma identidade atribuída pelo capital que o empregava. De acordo com o clássico de Maria Lucia Martinelli (Serviço Social: Identidade e Alienação), a profissão assumia uma face humanitária, mas escondia os interesses repressivos sobre o movimento dos trabalhadores.

Os serviços criados pela burguesia (que às vezes se consolidavam com a participação do Estado) traziam a falsa representação de um Estado paternal, bom e protetor. A identidade do Serviço Social era aquela atribuída pelo capital: uma estratégia de controle social e de difusão do modo capitalista de pensar.

O Movimento de Reconceituação nas décadas de 1960/1970 é o marco a partir do qual o Serviço Social busca romper com a forma que estava posta para seu agir profissional. Essa tentativa de romper, aparece inicialmente nos questionamentos referentes a importação de modelos norte americanos e europeus para a ação, mas vai se estendendo para a própria identidade profissional.

O projeto ético político do Serviço Social, materializado no Código de Ética de 1993, demonstra de forma contundente que a profissão busca, ainda nas palavras de Martinelli, negar a identidade atribuída pelo capital.Tal negativa só é possível a partir da concepção da sociedade como totalidade histórica, a partir do amadurecimento da consciência social, da ruptura com a alienação.

E o que tudo isso tem a ver com o “caso” do adolescente chicoteado?

Tem que o Serviço Social, especificamente nessa situação, pode trabalhar basicamente a partir de duas perspectivas: Uma, a da identidade atribuída, onde irá ouvir a família buscando formas de não deixar que as coisas tomem proporções maiores. É a escuta atenciosa, delicada, humanitária, que oferece ajuda e suporte no emergencial. Que faz a família acreditar que vai ficar tudo certo. Que não precisa se mobilizar contra o supermercado porque tudo ou já foi ou será resolvido.

A segunda é a da resistência. É a que entende que, na situação desse adolescente está expressa a questão social de diversas formas e que, portanto, a intervenção inicialmente deve ser direcionada para o atendimento a direitos que foram negados, violados. O assistente social vai buscar, em uma análise de totalidade (considerando inclusive os seus limites institucionais), orientar, encaminhar essa família para serviços, programas e projetos existentes. Vai articular assistência judiciária, psicológica. Vai indicar os movimentos sociais (associações, grupos) que estão coletivamente discutindo violência, racismo, adolescência. Vai buscar a rede socioassistencial.  Em resumo, vai para além do imediato.

O que o supermercado espera que o assistente social faça? Minha experiência me indica que as expectativas estão diretamente relacionadas à primeira perspectiva. O que o assistente social pode fazer? O referencial teórico metodológico que adoto me aponta que é na segunda perspectiva que nos colocamos de fato enquanto profissionais com competência ético político, técnico operativa e teórico metodológica.

É possível fazer isso sem perder o emprego? Minha experiência profissional e o contato com assistentes sociais dos mais diversos espaços no Brasil, me diz que sim. A palavra é direitos. Suporte é muito pouco.

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