Niketche: A dança da vida das mulheres

Para o homem sempre os melhores pedaços da galinha. E de forma muito especial, a moela. E deve-se servi-lo de joelhos. Essa é uma das coisas que eu ria enquanto lia “Niketche” romance de Paulina Chiziane. Quero contar para vocês sobre esse livro, mas antes, permitam-me apresentar (para quem não conhece) a autora.

Paulina Chiziane é moçambicana, inclusive a primeira mulher a lançar um livro em Moçambique, lá em 1990. De lá para cá Paulina vem construindo uma carreira linda como escritora. E eu não conhecia Paulina. Buá, buá, buá. Como perdi tempo. Engraçado que um outro autor moçambicano, homem, branco, é mais conhecido pelos lados de cá. Por que será né??? Mas deixemos Mia Couto de lado e vamos falar de Paulina Chiziane. Conheci Paulina ano passado quando ela ganhou o Prêmio Camões, um dos prêmios literários mais importantes da Língua Portuguesa. Aí esse ano li os dois livros que ela tem publicado no Brasil: O alegre canto da perdiz e Niketche. Ela escreve especialmente sobre a mulher de Moçambique. Mas escreve de um jeito tão único que você não consegue parar de ler.

Engraçado que ela vai articulando elementos da realidade da mulher no país dela, com histórias fictícias e vai dando uma mistura envolvente, poderosa. Por exemplo, eu nunca tinha ouvida falar do alongamento genital feminino. Apareceu no livro Niketche. Fui pesquisar. É uma prática de alguns grupos étnicos do Moçambique que consiste em utilizar óleos e massagens nas meninas a partir de oito anos, para que os pequenos lábios da vulva sejam alongados, ficando de 3 a 4 centímetros maiores. É assim que Paulina vai nos apresentando Mocambique a partir da visão de uma mulher. Preta.

A partir daqui vou falar da história do livro “Niketche” e, portanto, o texto tem  spoillers.

Rami é casada com Tony há 20 anos e tem cinco filhos. Tony é rico. Ela começa a investigar os casos extraconjugais de Tony e descobre que, além dela são outras quatro mulheres: A Ju, a Lu, a Sally e a Mauá Salué.  Essas mulheres têm filhos do Tony, são família dele também. Rami sofre e chora, bate nas outras mulheres e apanha delas. No aniversário de 50 anos do Tony, Rami faz uma grande festa e convida todas as 4, oficializando a poligamia. Mesmo que legalmente não seja reconhecida no país e vista como atraso por alguns, o costume permanece. E Rami se aproveita desse costume para expor o marido, diante da sociedade. Olha a fala dela nesse jantar de aniversário:

“-Neste dia, não quis que essa grande família permanecesse invisível. Neste dia queria que todos testemunhassem que o coração deste homem é fértil como o húmus. O Tony é um homem que ama a vida e por isso a multiplica. Ele não se acobarda mas empunha a sua espada e afirma-se através de cinco mulheres e dezesseis filhos. ” (p.95)

De mulher traída, Rami vai se fazendo a primeira dama, a mulher que comanda a casa e todas as outras esposas. Rami ajuda as outras quatro mulheres a trabalharem, terem seus negócios e elas vão ganhando independência financeira.  Elas estabelecem uma escala, onde Tony fica cada semana na casa de uma, sendo bem tratado, cuidado, alimentado, amado.

O livro vai contando então as aventuras e desventuras desse casamento polígamo, entrelaçando a narrativa com fatos culturais de Moçambique. As mulheres do Tony são de partes diferentes do país, com uma divisão bem marcada entre norte e sul de Moçambique. Vamos conhecendo pelo olhar de Rami, as diferenças regionais do país.

Mas Rami não está feliz. E vamos partilhando as dores de sua alma, de mulher moçambicana do Sul, de mulher traída, de mulher que está envelhecendo, que se preocupa com o espelho, com os quilos a mais, que sofre com a necessidade de agradar o marido, que anseia por amor. O livro termina com um desfecho interessante. Cada uma das outras quatro mulheres vai cuidar da própria vida, casando-se oficialmente com outro homem. Rami tem um final surpreendente. Qual? Aí vocês têm que ler né?? Rsrsrs

Na minha leitura, o livro fala de poligamia, de vingança, mas especialmente da vida feminina, condição da mulher. E Niketche, nome do livro, é uma dança, de origem macua (uma etnia de Mocambique).

“Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens, desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom.” (p.139)

É isso. Para mim, niketche é a dança da vida. A vida das mulheres.

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