A coisa boa de dar aula é ter que ler sobre umas mil coisas e estudar sobre outras três mil. As considerações que eu trago aqui hoje, sintetizam algumas questões da aula que terei a alegria de ministrar no Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) no âmbito das minhas atividades de Pós Doutoramento.
Bom, a aula vai tratar de: “Perspectivas interseccionais:gênero, raça e classe” tendo como base textos da bell hooks e da Lélia Gonzales. E isso foi perfeito porque me permitiu reler alguns textos dessas duas, e construir algumas reflexões, das quais compartilho aqui algumas provocações.
Inicialmente quero destacar dois aspectos centrais.
Primeiro: eu sei que a concepção de patriarcado, enquanto estrutura de poder na sociedade contemporânea, diz respeito basicamente ao homem cis, branco e heterossexual, já que é esse perfil que ainda detém o poder nos mais diversos espaços. Masssssssssssss, tomo liberdade para dizer que entre o povo preto, existem sim, indicativos do sonho (melhor seria dizer pesadelo, não é?) de estabelecer o patriarcado negro.
Segundo: A ideia de que criticar o feminismo enfraquece a luta, é de um cinismo sem fim. Seja enquanto teoria ou como luta política, é preciso “criticar, reexaminar, confrontar, questionar” o feminismo para então avançar em um feminismo que contemple outras perspectivas que não apenas a das mulheres brancas pertencentes as classes dominantes.
Feitas essas considerações queria destacar que tanto bell hooks como Lélia Gonzales vão pontuar esse lugar esquisito que as lutas sociais contra o capitalismo, o sexismo e o racismo colocaram para a mulher negra. Porque basicamente acontece assim:
A luta contra o sistema capitalista, esquece, via de regra, que existe gênero e raça na classe trabalhadora e aí falar sobre mulheres negras é falar sobre as “famigeradas pautas identitárias” e abraçar o monstro da pós modernidade. Qualquer inciativa em relação a essa crítica, baixa o Kid Cultura (Musica de Oswaldo Montenegro) nessa “galera da centralidade na classe”, lançam umas três ou quatro palavras chave e acham que ganharam a discussão. Que preguiça gente.
Mas aí vem a luta contra o racismo. Irmandade preta, povo preto tentando construir alternativas e tal. Mas as questões das mulheres são secundarizadas, até mesmo inferiorizadas. Olha, se a gente conseguir resolver a questão da igualdade racial, depois a gente resolve essas outras questões. Olha, a mulher negra acaba tendo mais oportunidades que os homens pretos. E o “sonho” do patriarcado negro vai se evidenciando.
E aí temos a luta contra o sexismo, que via de regra, deveria ter como foco a luta contra a opressão sexista, mas que infelizmente se perde em perspectivas que focalizam exclusivamente as demandas de uma parcela de mulheres que quer a igualdade, mas não explicita a quem querem ser iguais. Uma análise mais apurada vai mostrar que na verdade elas querem ser iguais aos homens brancos, dominantes.
Nessa direção nós, mulheres negras, seguimos sem lugar nessas lutas. Vamos focar em classe e perceber que, mesmo quando ascendemos e ampliamos o nosso poder aquisitivo, continuamos submetidas a situações como ser “confundida”? Vamos direcionar todas nossas forças contra o racismo e ver os homens negros avançarem e nós continuarmos nos mesmos lugares e papéis? Vamos nos juntar na luta feminista e ver que para as mulheres brancas a gente continua sendo a empregada que limpa a casa enquanto elas estudam Simone de Beauvoir?
Não queremos abraçar apenas uma luta, porque apenas uma luta não nos contempla. Mas não temos tempo e fôlego para ficar em todos esses espaços que deveriam já ser plurais, levantando nossa bandeira. “Oi, você tem um minuto para ouvir a palavra de bell hooks? “ rsrsrs
É necessário pensar a perspectiva de análise interseccional. Na realidade brasileira, classe, gênero e raça estão imbricados, entrelaçados, se conformam mutuamente. E para pensar nessa realidade das mulheres negras no Brasil é preciso uma mudança de perspectiva. Atenção sindicatos, conselhos, frentes e partidos que discutem a questão de classe trabalhadora: Essa classe tem gênero, tem cor e raça. Atenção coletivos, movimentos, organizações que combatem o racismo: a igualdade não é só para homens negros. Atenção coletivos e organizações feministas: Nós mulheres negras também existimos.
Nas palavras de bell hooks, não podem nos pedir que façamos a escolha entre “um movimento negro que serve essencialmente aos interesses de patriarcas negros e um movimento de mulheres que serve essencialmente aos interesses de mulheres brancas racistas”.
Não. A gente quer e precisa mais do que isso. Sigo trabalhadora, lutando todo dia para continuar existindo nessa ordem das coisas. Sigo negra, na luta contra o racismo que todo dia mata meus irmãos e irmãs. Sigo feminista, na luta contra um sistema que oprime as mulheres.