A literatura sempre foi uma das artes que mais aprecio. Sei lá, palavras me tocam a alma de um jeito único. Desde que me entendo por gente eu leio e, modéstia as favas, leio muito. Ainda no ensino fundamental, na minha querida Patrocínio Paulista, eu ia à Biblioteca Municipal com minha carteirinha retirar livros toda semana. Li de tudo nessa vida. De Sidney Sheldon e Agatha Christie a Machado de Assis, José de Alencar e tudo que havia por lá. Lembro, quando ainda no Ensino Médio, li as “Brumas de Avalon” e aquilo simplesmente me fascinou.
Depois de já adulta, conheci Clarice Lispector e, evidente, que Macabéa (personagem do livro a Hora da Estrela) me doeu fundo na alma. A pobreza, a compulsão alimentar dela (me permitam nomear assim), as unhas pintadas de vermelho e roídas posteriormente… tudo me doía de um jeito profundo, intenso. E então, já com quase quarenta anos, conheci a obra de Conceição Evaristo. Ponciá Vicêncio (personagem do livro homônimo) chegou me dando um soco no estômago e tudo ali fazia sentido para mim. E é sobre isso que quero falar com vocês nesse texto que pretende jogar para a geral umas ideias que tive ontem.
Macabéa é uma personagem pobre, trabalhadora, e que foi criada por uma escritora com um estilo intimista de tramas psicológicas. Ponciá é uma personagem pobre, negra, criado por uma escritora com um estilo de reunir em um personagem singular vivências plurais.
E depois que eu li Ponciá Vicêncio eu fiquei pensando que a gente precisa de Macabéas e Ponciás para que a literatura ouse se aproximar da pluralidade das mulheres no Brasil. Porque ainda que Macabéa seja uma mulher trabalhadora pobre, ela carece de um colorido social que Ponciá nos esfrega na cara e que para mim, mulher negra, fez mais sentido. E aí, ainda que ambas tragam questões relacionadas ao adoecimento mental, são perspectivas únicas. Macabéa está morrendo aos poucos, mas Clarice não nos diz isso e aí a gente toma aquele choque com o atropelamento no final. Já Ponciá vai morrendo aos poucos e Conceição faz questão de nos dizer isso, quase como se quisesse a gente achando que a vida de Ponciá já não tinha mesmo muito sentido.
E vale ressaltar, para que não fique nenhuma dúvida, que eu não estou dizendo que uma personagem é melhor ou mais representativa que outra. Ou ainda, que uma autora seja melhor ou maior que outra. O que quero compartilhar com vocês é que na pluralidade das mulheres brasileiras, qualquer iniciativa que se pretenda homogênea é capenga e inconsistente. Isso serve tanto para literatura como para o feminismo. Se de fato, quisermos pensar a diversidade das mulheres brasileiras, precisamos entender que existe Macabéa, Ponciá e tantas outras. Fico pensando que para quem se nomeia feminista, ler “Mulheres que correm com lobos” e não ler “Niketche” é um equívoco colonial. Porque são perspectivas diferentes, que enriquecem de forma gigante o debate feminista.
Optar por uma narrativa sem ao menos conhecer outras é perpetuar um olhar enviesado, limitado, porque não dizer de dominação. Eu posso continuar tendo predileção por Macabéa sem nenhuma crise, mas preciso conhecer Ponciá. Para mim, particularmente, depois de Ponciá, Macabéa perdeu um pouco do brilho. Mas essa sou eu, com minhas vivências e particularidades.
Mas enfim, comecei falando de literatura e estou aqui enredando um debate de perspectiva feminista decolonial. Sei lá, talvez fosse essa a intenção mesmo.
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Não sei porque ainda me surpreendo ao ler suas reflexões, não é surpresa que sua escrevivência parte de um lugar particular e muito plural. Hoje me peguei questionando a mim mesma sobre as visões enviesadas ainda existentes no feminismo que prático. Obrigada por esse e tantos outros.
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Tahina… que presente esse comentário. Obrigada por ser exatamente quem você é. Vamos juntas.