Eu me lembro quando fiz um comentário breve sobre o livro “Salvar o Fogo” e disse que me surpreendi pelo fato do autor conseguir despertar o mesmo encanto que eu senti ao ler “Torto Arado”.
Bom, esse fim de semana, terminei de ler “Coração sem Medo” romance lançado agora em 2025, pelo Itamar Vieira Júnior. Quando comecei a leitura, já estava na expectativa de que seria inesquecível. E vou dizer pra vocês que não me decepcionei.
O autor desses três romances magistrais passa a encabeçar a minha lista de autores prediletos da atualidade.
Em “Coração sem Medo”, a personagem principal é Rita Preta, mãe solo de três filhos homens, pobre e que trabalha como operadora de caixa em um supermercado. Rita tem a vida marcada por relacionamentos fracassados, trabalho explorado, pobreza e um trauma de infância. Quando o filho mais velho, um adolescente, desaparece depois de uma abordagem policial, o autor vai construindo uma narrativa sensível e dolorosa da busca de uma mãe por seu filho desaparecido. Tem alguns momentos de muita angústia… Como por exemplo, quando em várias situações o autor descreve o encontro dela com o filho e de repente te revela que são na verdade, sonhos. O livro é construído com uma narrativa que as vezes faz a gente acreditar que o filho tá morto e em outras ocasiões, a gente tem certeza que ele está vivo. Angustiante, forte, intenso demais.
A crítica social que sustenta o texto é a violência policial urbana. Senti muito ódio da Polícia Militar. Esse livro tem um diferencial dos outros dois porque traz mais a questão urbana. Apesar da trama resgatar partes da infância de Rita na zona rural e fazer o contexto familiar de violência devido a disputa por posse de terra, a história se passa toda em Salvador. Interessante na referência a infância de Rita e sua origem familiar foi a ligação a personagens de Torto Arado. Eu vibrei nesse momento do texto.
E aí eu volto pra pergunta que dá título a esse texto. Como falar sobre “Coração sem Medo” sem fazer referência a “Torto Arado” e “Salvar o Fogo”? Na minha modesta opinião, não é possível.
Para quem não conhece os livros, deixa eu apresentar rapidinho.
Em Torto Arado, a trama gira em torno de Bibiana e Belonisia, duas irmãs que, quando crianças, em uma brincadeira, se machucam com a faca que sua avó escondia dentro de uma mala embaixo da cama. A partir desse acidente, a vida delas fica marcada pra sempre e só no final o autor conta a história da faca. Eu passei o livro inteiro tentando entender a faca.
Mas a vida de Bibiana e Belonisia é contada como pano de fundo. Na minha opinião, no centro da trama está a questão agrária. Mas a questão agrária com as cores,o cheiro, a cultura, a religião do povo negro. São trabalhadores negros, morando numa fazenda, trabalhando, cultuando seus encantados, celebrando, nascendo, morrendo… resistindo. E no final de tudo, se reconhecendo como quilombolas.
A linguagem é maravilhosa e o estilo envolvente, você não consegue parar de ler.
Minha personagem predileta é Belonisia, tão frágil, mas dona de uma força sem precedentes.
Acerca de “Salvar o Fogo”…
Saem Belonisia e Bibiana (personagens de Torto Arado) e entra Luzia do Paraguaçu. Permanece como pano de fundo, a disputa pela terra, a expulsão dos povos originários e descendentes de africanos dos seus territórios e as formas encontradas por eles para resistir a miséria, a violência da exploração, da colonização.
Em “Salvar o Fogo” fica nítida a crítica a forma como a colonização feita pela Igreja Católica violenta os saberes e culturas ancestrais. Mas Luzia tem sangue africano. Tem sangue tupinambá. E ainda assim segue Frágil, submissa, se escondendo dos seus medos e erros, lavando as roupas do Mosteiro que domina o território onde vive, chamado de Tapera.
Luzia reza, tenta apagar a sensibilidade ancestral. Não quer, não pode ver o fogo. Mas o fogo está dentro dela.
Uma história linda, sensível, inesquecível.
Bom, o que esses três livros tem em comum?
Mulheres negras como personagens centrais, tramas fantásticas, linguagem marcante. E a questão das lutas do povo negro, sejam essas lutas rurais ou urbanas. As três histórias mostram as violências enfrentadas e as resistências construídas pelo povo negro.
Seja na luta pelo direito ao seu território (Torto Arado), seja na luta pelo direito a sua cultura (Salvar o Fogo), seja na luta pela continuidade de sua existência (Coração sem Medo). E a espiritualidade marca os três textos. Apesar de muito explícita em “Torto Arado” e em “Salvar o Fogo” e meio ofuscada em “Coração sem Medo”, é um referencial nos três livros, evidenciada inclusive nas capas como Arlei me explicou e eu não tinha reparado. A “espada de São Jorge” na capa do primeiro livro, A “arruda” na capa do segundo e a “comigo Ninguém Pode” na capa do terceiro.
Enfim, encantada com esse último livro, mas incapaz de escolher o meu preferido entre os três.
Sigo esperando a Flisol 2025 aqui em Araraquara pra tentar conseguir o autógrafo desse divo chamado Itamar Vieira Júnior. E recomendando a leitura dos três livros. Simplesmente inesquecíveis.