Bolinho de grão de bico e queijo ou não existe segunda chance

São sete horas da noite e Lídia vai fechando a casa com cuidado. Primeiro o portão que sai para a rua e na sequência o portão que sai para o quintalzinho nos fundos. Lídia volta fechando as portas e as janelas da casa pequena de dois quartos, sala, cozinha e varanda. Casa fechada, Lídia, põe a janta no prato e senta em frente à televisão para assistir o que estiver passando. Dos tempos de mãe, esposa e trabalhadora ficou o costume de nunca assistir nada. Não tinha tempo e na falta de tempo, criou o hábito de só ver o que estava passando na televisão, sem de fato, assistir nada.

Lídia sente saudade do marido, dos filhos. Não sofre mais como há três anos atrás, quando o marido faleceu, mas ainda assim é uma saudade dolorida, longa, cheia de lembranças.

Ela leva o prato na cozinha e aproveita para colocar uma xícara de chá cheia de grão de bico de molho na água

 A agua cobre o grão de bico, ela cobre com um pano de prato a bacia e já no quarto, cobre a si mesma com o edredom e se prepara para dormir. Ainda não deu nove horas da noite e ela já está na cama, esperando o sono chegar.

Quando o sol começa a nascer no outro dia, Lídia já está de pé. Não, velhos não acordam cedo, ela pensa. A questão, Tom, é que velhos dormem cedo. Isso ninguém sabe, meu velho Tom. Lídia troca a agua do grão do molho do grão de bico e vai varrer a calçada, cuidar dos canteirinhos de temperos, cuidar das coisas do quintal.

Quando volta para dentro de casa é hora de fazer o almoço. Os dedos ágeis que não parecem ter 68 anos, vão tirando as cascas do grão de bico enquanto a mente lembra de tantas vezes que descascou grão de bico na casa da patroa, mas nunca sobrou dinheiro para comprar para fazer em casa. Parecia luxo demais. E se os meninos e o marido não gostassem? Ia ser desperdício. Melhor comprar feijão, que já conheciam.

E foi com feijão e muita dignidade que Lídia e o marido criaram os três meninos. Na casa da patroa, o grão de bico ou virava salada ou bolinho frito de grão de bico, pratos que a patroa fazia e se gabava de ser uma ótima cozinheira. Sim, ela sabia cozinhar muito bem, mas sabe, Tom, era eu quem descascava o grão de bico.

Os anos passaram. Os três meninos de Lídia cresceram. Foram trabalhar, conseguiram estudar pelo menos o básico e ela tinha o maior orgulho dos seus três mosqueteiros. Cada um seguiu seu caminho, cada um para um canto, naquela vida simples de gente honesta e trabalhadora.

Ela relembra os últimos cinco anos ao lado do marido. Os primeiros cinco anos só deles dois. Nunca tinha sido só eles. E agora estavam aposentados, cada um com uma aposentadoria mínima, mas que daria para viverem com dignidade. A casa era deles, não tinham muitos gastos com saúde.  Precisavam aprender um outro jeito de estar em casa, estar juntos. Quando se situaram nessa nova vida e começaram a fazer planos, o marido faleceu de repente, em um acidente com ônibus.

Eu não tive tempo, Tom, de fazer grão de bico para ele. Ele teria gostado? Teria reclamado da textura? Teria achado diferente? Queria fazer para ele, para os meninos.

Lídia termina de tirar as cascas, enquanto pensa nesses percalços da vida. Toda semana faz grão de bico agora, cada vez de um jeito diferente. Porque a patroa diz que sabia cozinhar, mas era sempre os mesmos pratos. Lídia não. Lídia inventa. Hoje vai fazer bolinho assado.

Bate o grão de bico cru no liquidificador com meia xicara de chá de água.  Gosta dessa receita. Inacreditável que não vai farinha, leite, ovos ou fermento. O grão de bico já está molinho depois de 15 horas de molho. Ainda no liquidificador ela acrescenta sal, duas colheres de azeite e 100 gramas de queijo ralado.  Está pronto. Bate bem. Então, tira, mistura cebolinha picada e coloca em forminhas de empada untadas com óleo e farinha.

Leva para assar. Enquanto programa a air Fryer (20 minutos, temperatura 180 graus) Lídia olha para o velho forno e ri sozinha. A tal “Air Fryer” foi um presente do filho no último aniversário. Ela achava que não ia se acostumar e agora praticamente abandonou o forno, o velho Tom. “Desculpa Tom, mas para nós dois não vai ter segunda chance. Na verdade, quando o assunto é a vida Tom, nunca há segunda chance”.

Os bolinhos ficam prontos. Lídia come três deles e não sabe o que fazer com outros dez que sobraram. Assim como não sabe o que fazer com a solidão da casa vazia, com o dia inteiro sem nenhuma outra ocupação senão as lembranças de um tempo em que ela corria tanto, em que ela buscava tanto.

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