A menininha olha o espelho e sorri. Ela se acha tão engraçada com seu cabelo de duas tranças, uma de cada lado da cabeça. As tranças foram feitas pela mãe e, diferente de tranças que descem escorridas pela cabeça, as dela parecem ter vida própria. Ela pode erguer para cima, pode esticar para o lado. São tranças mágicas mamãe, ela fala sorrindo. Eloana, a menininha, sorri no espelho, sorri para mãe e segue guiada pela mão afetuosa do pai para a escola.
A professora inicia a chamada. Ana? PRESENTE. Bianca? PRESENTE. Camila? PRESENTE. Carlos? PRESENTE. Davi? PRESENTE. Daniela? PRESENTE. Eduardo? PRESENTE. Eloana? Ela vai responder PRESENTE com sua vozinha infantil de cinco anos, quando o menino da mesinha do lado diz: Eloana cabelo de bruxa? PRESENTE.
Alguns coleguinhas riem muito. A menininha não consegue responder a chamada. A professora fica brava com o menino e a chamada segue. Eloana, em sua cabecinha não entende bem o porquê, mas não quer mais sair para o recreio, não quer mais aquele penteado. Lá dentro do seu coraçãozinho, um aperto e ela sente pela primeira vez vergonha do seu cabelo mágico.
Em casa a mãe, negra e linda como a noite, ouve a história contada entre lágrimas. Mas você gostou tanto, meu amor. Não liga para o que eles falam. Mas Eloana não quer mais aquelas tranças mágicas.
No outro dia a mãe muda o penteado. Trancinhas pequeninhas, cheias de contas coloridas. Ela sorri e balança as trancinhas no espelho. Uma felicidade toma conta da menininha.
Mas vem o próximo ano e alguém olha para as trancinhas coloridas dela na escola e diz que Eloana tem cabelos de cobra. Ela chora.
A mãe muda o penteado. Prende o cabelo da menina em um coque alto.
Eloana, seu cabelo é de bombril? Eloana chora.
A mãe faz rolinhos (afetuosamente chamados birotes) no cabelo e prende com elásticos coloridos.
Eloana, cabelo de bostinha de rolinha.
Eloana chora na pré-escola. Chora na segunda-feira. Chora na terça-feira. Eloana chora na quarta série. Chora na quinta série. Eloana chora na sexta feira.
Eloana não gosta do que vê no espelho. A pele negra naquele tom de muito café com pouco leite. O cabelo não é liso, não tem onda, não tem cachos. O cabelo é crespo, alto, incontrolável. Eloana chora, insiste, implora e então os pais concordam em alisar o cabelo dela. Ela está feliz, com seu cabelo escorrido, finalmente controlado.
E a partir daí a vida de Eloana é a busca do controle do cabelo: tudo gira em torno dele.
Eloana, vamos tomar banho de cachoeira hoje?
Melhor não, meu cabelo não pode molhar esses dias por causa da progressiva.
Eloana, vamos ali rapidinho na praça?
Não, preciso pranchar meu cabelo.
Eloana, vamos dormir lá em casa? Não. Preciso fazer touca para dormir.
O cabelo está controlado. O cabelo está no controle.
Do alto dos seus 18 anos, Eloana está sempre em busca. O novo produto, o novo tratamento, a nova solução definitiva para lisos perfeito.
Naquela quinta-feira, ela olha no espelho com atenção. As entradas na testa mais profundas, o couro cabeludo irritado, a queda acentuada. Ela está ficando sem cabelos. Cada vez mais lisos, cada vez mais escorridos e menos volumosos. Parecia ironia, mas, finalmente chegara no liso perfeito e sem volume na raiz. Eloana chora. Chora de frustração, de desespero, de medo. Depois de alguns meses não tem mais como esconder que são apenas duas alternativas: parar o processo químico ou perder todos os cabelos.
Eloana cabelo de bruxa. Eloana cabelo de bombril. Eloana cabelo de cobra. Eloana cabelo de bostinha de rolinha. Eloana não molha o cabelo. Eloana não sai sem pranchar o cabelo. Eloana nunca está pronta.
As vozes ecoam na cabeça de Eloana. E a culpa era toda dele, aquele cabelo horroroso, crespo, sem balanço, sem nada. Eloana chora e vai arrancando tufos de cabelo da cabeça. A sensação é boa. Eloana começa sorrir e arranca mais. Não sente dor. É gostoso. Quem sabe nasceria um cabelo liso, escorrido, bonito?
Os pais estranham os risos vindos do quarto e menos de uma hora depois Eloana esta sedada e os pais recebendo as orientações para início do tratamento psiquiátrico emergencial.
Eloana perde o vestibular. Eloana perde o tempo, o tino, o rumo.A tia materna, trancista, vem de longe para ajudar. Eloana se encanta com aquele cabelo comprido, trançado. A tia a convence a colocar tranças e as primeiras são colocadas bem compridas, pretinhas. Eloana olha para o espelho e gosta do que vê. Aos poucos começa a curar as feridas visíveis. O cabelo cortado curtinho vai crescendo e a cada troca de tranças vai ficando mais forte. As feridas internas seguem, adormecidas com medicamentos.
E é nesse contexto que voltando do cursinho, ela encontra Mateus, tão lindo como um deus. Mateus preenche todos os espaços da vida de Eloana.
Você é tão linda Pretinha. Você é tão gostosa meu bombom. Esse corpão é só do pai viu? Com quem você estava conversando Vida? Pretinha, não quero mais que você ande com essa sua amiga. Não te faz bem. Depois você estuda meu tesão. Eu vou trabalhar para te dar uma vida de rainha.
Eloana esse Mateus não é uma pessoa boa para você.
Imagina, ele me ama. Ele me acha linda. Ele gosta do meu cabelo de tranças.
Eloana, esse Mateus está abusando de você.
Ain, parece que ninguém quer me ver feliz. Só o Mateus me ama. Só o Mateus me aceita. Só o Mateus me acha linda. Vou morar com o Mateus.
Na primeira desavença, Mateus bate em Eloana. Na segunda ele a machuca. Não tem a terceira vez porque a vizinha escuta os gritos, entra na casa com o marido e enquanto o marido enfrenta um transtornado Mateus, a vizinha leva Eloana para casa dos pais dela.
Na casa dos pais, depois de duas semanas se recuperando, ela olha no espelho. Não quer mais aquelas tranças que estava usando. Mas não tem dinheiro para pagar a trancista. E se eu tentasse eu mesma fazer?
A amiga vem para ajudar e depois de um dia inteiro de trabalho está pronto. Tranças vermelho sangue, uma explosão de vida. Tranças feitas com material que tinha comprado há bastante tempo, mas Mateus disse que era vulgar.
Eloana você leva jeito para isso.
Eloana você pode trançar o meu cabelo?
Eloana quanto você cobra para trançar?
Eloana, você faz tranças nagô?
Eloana, você tem horário esse sábado?
Eloana você tem horário semana que vem?
Eloana podemos marcar para o mês que vem?
Ela vai aprendendo a cuidar de cabelos enquanto cuida da própria alma. Cada cabelo trançado é como uma gota de remédio cicatrizante na própria ferida. Cada história ouvida com aquelas mulheres tem um pedacinho da sua.
E um dia aconteceu. Eloana já está com 28 anos, uma filhinha de 2 anos e mais um relacionamento fracassado. O curso superior ainda não veio, mas ela segue trançando cabelos, porque além de ser uma fonte de renda, ela também gosta do que faz.
Nesse dia, Eloana tirou as tranças que já estava usando há 3 meses. Lavou e hidratou o cabelo como já era de praxe para o processo de troca do aplique. Se preparou para dormir pois no outro dia, iria contar com a ajuda da amiga para colocar o novo cabelo, que de novo era vermelho, mas de um formato mais fino e mais curto.
Mas então Eloana olha no espelho. E do espelho a menina Eloana lhe sorri. Com suas tranças mágicas, divertidamente erguidas. Fazia tanto tempo que ela não via a menina. Já não lembrava como ela era espontânea, livre, divertida e incontrolável. E tinha certeza que essa leveza da menina era por causa daquele cabelo. Aquele cabelo incontrolável, cheio de cuidado e afeto.
Eloana passou a mão no cabelo. Ainda não achava bonito. Mas ele também não era feio. E se?
A menina também passou a mão nas tranças e levantou para cima. Sorriram ambas.
E se?
Um outro capítulo estava começando.